por: Webston Moura
No interior, já fomos totalmente adeptos do uso da bicicleta para diferentes finalidades. Da recreação ao trabalho, levar e trazer os filhos da escola, quase tudo fazíamos de bicicleta. Afora isto, andávamos a pé. O carro era um luxo cabível a poucos, aos ricos ou supostos ricos, isso num tempo em que bastava ser caixa do Banco do Brasil para assim ser considerado: “Fulano é rico, trabalha no Banco!”, dizia-se! E esse tempo de que falo é o da minha infância.
Andar
de bicicleta era tão natural que não era considerado uma “prática de vida
saudável”, pois que era a própria rotina em si, portanto saudável sem precisar
de uma conceituação em torno do assunto. Simplesmente, éramos nós com nossas
bicicletas, homens e mulheres, meninos e meninas, estes quase sempre levando
alguém à garupa para ajudar a dar tração nos pedais. E quem não se lembra da
clássica cena de uma família, com o homem guiando, a mulher sentada de ladinho, na garupa, levando um filho pequeno ao colo, numa tarde de domingo? Outros
tempos, tempos em que não precisávamos trancar as portas ou possuir cercas
elétricas, tampouco nos preocuparmos com homicídios, pois praticamente eles não
existiam, ao menos não tanto quanto hoje.
Ouvíamos falar da cidade grande, da capital Fortaleza, da metrópole (ainda não era megalópole) paulistana e de outros lugares que, para nós, representavam, em parte, esperança de progresso (um emprego pro José) e, em parte, medo, algo até obscuro. Éramos os sonhadores sofridos e, ao mesmo tempo, pessoas felizes de um país que, inevitavelmente, teria futuro, um bom futuro, pensávamos. E, apesar de todas a as cautelas e das predições de todos os “profetas”, não imaginávamos um futuro ao estilo Mad Max [1], este futuro que hoje, a ferro e fogo, chegou e é o nosso presente. Nesse sentido, a palavra "presente", uma graça que se recebe de uma pessoa amada, soa até sarcástica.
Claro,
não vivíamos imunes aos problemas, pois que todas as épocas têm os seus. Mas
podíamos confiar na convivência geral. Conhecíamos o verdureiro, o peixeiro, o
padeiro, os meninos que vendiam bolos fatiados em bandejas, indo de porta em
porta, o rapaz que “ajeitava” ventilador, aquele que vendia pirulito, um que
vendia dindim, o outro que sabia de tudo na hora de consertar as velhas
geladeiras ou aqueles monumentais (eram grandes) aparelhos de TV à válvula. Não
éramos globalizados (nem sonhávamos ser). Éramos uma aldeia, uma comunidade. E
todos de bicicleta. A nós era óbvio viver em paz e andar pelas ruas em paz, uma
vida tranqüila. Trânsito era matéria do Jornal Nacional, isso no tempo em que o
“trovão” Cid Moreira dava o ar de sua graça no tal horário nobre da Rede Globo.
Mas eis que chega a roda
viva e carrega tudo pra lá! ― diz-nos o poeta da canção brasileira,
senhor Chico Buarque de Holanda [2]. O tempo passa, o mundo muda. E cá estamos nós,
sérios, seríssimos, discutindo o aquecimento global e a mobilidade urbana, os
problemas da política, a maldade de parricidas, fratricidas, genocidas,
latrocidas e outros cidas de diferentes naturezas. Aqui estamos nós embriagados
de progresso, engordados em excesso, corroídos, deprimidos ou ingenuamente
alegres. Aqui estamos nós meio (ou muito) perdidos, procurando Deus e o
óbvio. E, malgrado a teimosia de alguns, falando de modo geral, não andamos mais de bicicleta, que é
coisa que dá trabalho e, pior, não dá status!
Num tempo onde importa mais parecer que ser, mandamos um selfie [3], com a mão em hang
loose [4], um sorriso de comercial de creme dental, tudo lindo e joiado lá no facebook. Aparentemente, por trás de
todas máscaras, somos felizes. Somos? Como ser feliz com tanto trânsito e tanto
assalto? Mas cá estamos nós cercados de tecnologia e de livros de auto-ajuda. E
as bicicletas?
Hoje,
as bikes, como são chamadas, são um
incômodo para o trânsito, ou melhor, para os carros. As cidades se
verticalizam, o máximo de espaços é ocupado, há pressa e úlcera e não há tempo a
perder, que o desenvolvimento requer ser aplicado a qualquer custo, mesmo ao
custo da perda da frágil humanidade que ainda carregamos debaixo de tanto consumismo.
Mas
as bicicletas, imorredouras de sua natureza, retornam dentro da ideia de uma
urbanidade sábia e saudável. Não que sejam uma unanimidade, mas um dos pontos
sobre os quais o conceito de qualidade de vida se apóia. Quem diria que redescobriríamos o óbvio? E ainda há muita gente por descobrir esse óbvio, o de uma vida mais tranquila em meio a amigos de verdade e ― bicicletas!
Da capital de um país europeu, a Inglaterra, temos notícias assim: Londres comemora sucesso de aluguel de bicicletas. E em diferentes cidades do Brasil pessoas se organizam para, ao menos, utilizar a bicicleta como meio de recreação, esporte, transporte, o que já implica na melhoria da saúde delas e influencia na cultura de seus conviventes. Há inclusive uma campanha que exige IPI Zero Para Bicicletas, uma boa ideia!
É certo que a unidade do tempo de outrora não existirá mais. Perdemos aquele sentimento comunitário que nos fazia iguais uns com os outros, apesar de todas as diferenças. Mas, por razões de sobrevivência e melhoria desta vida que hoje é mais sobrevida mesmo, haveremos, quem sabe, de redescobrir, a partir de algo simples como andar de bicicleta, que há um sentimento de mundo a ser recuperado: o de que não basta estarmos, mas sermos com o mundo, sendo este (novo e redescoberto ou inventado) mundo a expressão sincera e humilde dos nossos corações. Talvez, tenhamos ainda tempo para escapar de toda essa "cultura fast food" [5], de todo esse fervor de entretenimentos mil. Assim, mais centrados em propósitos de uma vida mais comunitária, faremos dos nossos ambientes, das nossas cidades lugares realmente mais interessantes. Aí voltaremos a perceber uma flor, o por do sol, a magia de um trovão e a graça de bons e verdadeiros amigos. E saberemos, sem sombra de dúvida, o que é preciso preservar: a vida, íntegra, natural e original, sem subterfúgios, sem maiores encenações. Mesmo sofrida, viva a vida! E que ela possa ser melhor, como um antigo passeio de bicicleta, namorado e namorada ao vento pelas ruas simples e bucólicas de uma sonhada cidade do interior. Sonhemos, sonhemos!
* Webston Moura é poeta, tecnólogo de frutos tropicais, editor dos blogs O Araibu - um diálogo pela vida, Arcanos Grávidos - poesia & outras águas, além de co-editor de Kaya [revista de atitudes literárias], Literatura sem fronteiras e colaborador do blog da Casa dos Amigos de Russas. Sua fan page é esta: https://www.facebook.com/oaraibu.
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Notas:
1. Referência à série de filmes Mad Max estrelada pelo australiano Mel Gibson, onde as histórias falam de um mundo fictício de algum futuro sem leis, selvagem, brutalizado após o colapso de uma civilização. Saiba mais aqui.
2. Referência à canção "Roda Viva" de Chico Buarque, que fala do ser humano em face da transitoriedade da vida. Saiba mais aqui.
3. Referência ao hábito hoje muito frequente das pessoas postarem na internet fotos (auto-retratos) a partir de dispositivos como smartphones e afins, uma "febre".
4. Simbolo/sinal que se faz com a mão, como se pode ver aqui.
5. Modo de vida baseado no "estilo" fast food (comida rápida), conferindo-lhe pressa e consumismo. Saiba mais aqui.
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